Reforma tributária: qual o impacto para o setor da saúde?

O sistema tributário brasileiro, inaugurado com a Constituição de 1988 – mas com raízes muito anteriores a ela, parece ter chegado a uma situação de esgotamento: sua manutenção em uma economia moderna, digital, competitiva e veloz se mostrou inviável, a ponto de comprometer o bom desenvolvimento econômico.

Neste artigo, iremos abordar os motivos da necessidade de mudança, os projetos atuais em discussão e os seus impactos, principalmente no setor da saúde, com destaque para uma possível majoração de tributos em até 200% para algumas empresas.

Desequilíbrio

De fato, desequilíbrios orçamentários, irresponsabilidade política e ausência de planejamento a médio/longo prazo corroeram as bases do sistema tributário brasileiro, afastando-o da neutralidade, simplicidade, justiça e eficiência, qualidades presentes em um sistema tributário desejável. Ao contrário, a tributação brasileira se envenenou com (i) excesso de benefícios fiscais e regimes diferenciados, muitos deles ilegais, comprometendo a neutralidade do sistema; (ii) quantidade exorbitante de tributos, muitos deles com mesmas bases de cálculos; (iii) elevada complexidade, com tributos incluindo outros tributos em sua base de cálculo; (iv) diversas obrigações acessórias, com custos altos de implementação[1]; (v) caducidade de certos tipos tributários em face da complexidade econômica atual. A situação tornou-se tão grave que, recentemente, o Governo Federal anunciou a redução da alíquota de IPI sobre determinado setor como forma de elevar a carga do IPI do mesmo setor[2]!

A fim de corrigir, ou a menos mitigar, parte desses problemas, há muito tempo se fala na implementação de uma reforma tributária. Ocorre que toda a reforma tributária que se preze implica em uma quebra de paradigma, ou seja, uma ruptura com o regime tributário anterior e a instituição de um novo modelo fiscal. Nesse sentido, a implementação de uma reforma tributária tem, como principais consequências, o reequilíbrio ou o balanceamento (i) da carga tributária, entre os diversos agentes econômicos (leia-se contribuintes) e (ii) das receitas tributárias, entre os diversos agentes políticos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal).

Redistribuição

A redistribuição da carga tributária nada mais é do que a majoração da carga tributária de determinados setores e a redução da carga tributária de outros setores, a fim de estabelecer um novo equilíbrio de forças. Nesse sentido, a reforma tributária pode resultar na revisão/cancelamento de benefícios fiscais existentes, majoração de alíquotas para alguns setores e redução para outros e fim de regimes especiais.

Por outro lado, a redistribuição das receitas tributárias resulta na perda de receitas tributárias para alguns entes federativos em detrimento de outros, do mesmo nível ou de níveis diferentes. Assim, estados podem perder receitas para municípios, municípios podem perder receitas para a União ou municípios podem perder receitas para outros municípios. Isso pode ocorrer com a transferência de tributos de um ente para outro ou pela mudança da titularidade de cobrar o tributo (exemplo, do município em que localiza o estabelecimento prestador de um serviço para o município em que o serviço é fisicamente prestado).

Por todos esses aspectos, a reforma tributária é uma eterna fonte de conflitos e, não por acaso, no Brasil, é uma eterna morte anunciada. Diante desse cenário, o que se pode esperar dos projetos de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional?

Projetos

Os dois projetos de reforma tributária em tramitação (PEC 45, na Câmara, e PEC 110, no Senado) possuem elementos em comum, a saber: (i) a instituição de um imposto sobre bens e serviços (IBS), nos moldes de um imposto sobre valor agregado (não-cumulativo), substituindo tributos atualmente existentes, e; (ii) a instituição de um imposto seletivo sobre mercadorias ou serviços, com finalidade extrafiscal. Apesar do nome, as duas propostas preveem um amplo campo de tributação pelo IBS, o qual abrangeria quaisquer atividades econômicas, incluindo a locação de bens e a cessão de direitos ou intangíveis.

O primeiro ponto que chama a atenção é que os dois projetos de reforma tributária focam na tributação do consumo, talvez o maior problema do sistema tributário atual. De fato, o sistema atual divide a tributação do consumo em industrialização, comércio e prestação de serviços. Essa divisão, além de não contemplar certas atividades econômicas (como locação e cessão de intangíveis), mostrou-se rapidamente ultrapassada pela economia digital e geradora de intensos conflitos entre contribuintes e órgãos de arrecadação.

Além disso, ambas propostas preveem a não-cumulatividade do IBS, de forma que as operações anteriores gerem créditos fiscais para o contribuinte, permitindo que apenas o valor efetivamente agregado ao produto/serviço vendido sofra a tributação (o que não ocorre, por exemplo, com o ISS). Com a não-cumulatividade, a neutralidade do tributo fica garantida, de forma que a carga tributária será a mesma independentemente da quantidade de etapas existentes na cadeia produtiva.

No tocante às particularidades de cada proposta, o projeto da Câmara (PEC 45) pretende substituir, gradualmente, o IPI, o ICMS, o ISS, o PIS e a COFINS pelo IBS. O IBS será um tributo não-cumulativo (IVA), cobrado por fora, mas com alíquota uniforme para todas as atividades (permitindo variações apenas entre Estados/Municípios), não sujeito a benefícios fiscais de quaisquer tipos, tais como isenções, reduções de base de cálculo ou crédito presumido, admitindo-se, contudo, a imunidade das exportações e o tratamento diferenciado para ME/EPP.

A alíquota do IBS, de acordo com esse projeto, será formada pela soma das alíquotas fixadas pela União, Estados/Distrito Federal e Municípios, sendo que no caso de operações interestaduais e intermunicipais, o imposto será devido ao ente de destino. Sua receita seria igualmente partilhada entre União, Estados/Distrito Federal e Municípios.

A PEC 45 não substituiu imediatamente os tributos citados pelo IBS; ao contrário, uma vez instituído, a previsão é que o IBS conviva com os tributos substituídos por um prazo de 9 anos. Nesse período, as empresas deverão recolher o IBS e os tributos atuais, reduzidos proporcionalmente pela arrecadação do IBS.

Por outro lado, consoante o projeto do Senado (PEC 110), o IBS será um tributo estadual e substituirá o IPI, IOF, PIS, Pasep, COFINS, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS. A receita de sua arrecadação será partilhada entre União, Estados/Distrito Federal e Municípios. O IBS-Senado poderá ter alíquotas diferenciadas para determinados bens ou serviços, podendo, ainda, ser objeto de benefícios fiscais (por lei complementar) nas operações com alimentos, medicamentos, transporte público coletivo de passageiros urbano e de caráter urbano, bens do ativo imobilizado, saneamento básico, e educação infantil, ensino fundamental, médio e superior e educação profissional. O período de substituição dos tributos citados pelo IBS-Senado seria de 5 anos.

Sob o aspecto de racionalização, simplificação e neutralidade do sistema tributário, a proposta da Câmara parece ser melhor que a do Senado, na medida em que: (i) ao optar por uma alíquota única do IBS, promove maior uniformização tributária e afasta discussões quanto à correta classificação de cada atividade, e; (ii) ao vedar qualquer tipo de benefício fiscal, rompe com os velhos vícios do sistema tributário nacional de distribuir privilégios em troca de apoio.

Contudo, é preciso reconhecer que, em alguma medida, os benefícios fiscais, temporários ou permanentes, são necessários – e até mesmo salutares, à qualquer economia de mercado, seja para estimular o investimento em setores carentes de investimentos (como saneamento básico e infraestrutura), seja para impulsionar a criação de empregos e de novas tecnologias por algum período de tempo (por exemplo, empresas startups em fase de consolidação), tendo relevante função extrafiscal.

Impactos para a saúde

Além disso, a criação de alíquotas uniformes do IBS, conforme a proposta da Câmara, deverá resultar em acentuado acréscimo da carga tributária para setores com utilização intensiva de mão-de-obra, como é o caso do setor de saúde, uma vez que as despesas com mão-de-obra não gerariam créditos de IBS. Esse potencial acréscimo de carga tributária, cumulado com a elevada tributação da folha de salários via contribuições previdenciárias, pode resultar em um aumento excessivo no valor dos serviços oferecidos à população, precarização do emprego, com a adoção de fórmulas alternativas de contratação (como a chamada “pejotização” ou a adoção de SCP, já autuadas pelo Fisco) e eventual inviabilidade de certos negócios.

Para efeitos de comparação, lembramos que, atualmente, boa parte dos serviços ligados ao setor de saúde (hospitais, prontos-socorros, clínicas médicas, de fisioterapia, laboratórios etc) sujeitam-se apenas ao ISS (alíquota máxima de 5%) e ao PIS/COFINS cumulativo[3](alíquota global de 3,65%). Com a implantação do IBS, é possível que essa carga fiscal suba dos atuais 8,65% para 25%, um aumento de quase 200%! Tal majoração trará impactos reais sobre o valor dos serviços oferecidos à população, em evidente prejuízo à essencialidade desses serviços.

Em verdade, a eleição do “valor agregado” como núcleo tributário gera um grande conflito com a utilização de mão-de-obra, uma vez que despesas com folha de salários não dão direito a crédito do imposto e, assim, integram o chamado “valor agregado” sujeito à tributação. Esse, que é um dos principais problemas da tributação do valor agregado, poderia ser mitigado de duas maneiras: (i) redução das alíquotas para setores com utilização intensiva de mão de obra; (ii) garantia de créditos presumidos para os setores mais afetados ou (iii) extinção (ou drástica redução) das contribuições sociais sobre a folha de salários.

Tanto a redução de alíquotas, quanto a garantia de créditos presumidos, não são admitidos pela PEC 45. Já a PEC 110, embora permita alíquotas diferenciadas, limita a concessão de créditos presumidos para situações muito específicas[4].

No que se refere à instituição de alíquotas diferenciadas, seria desejável que ela não se vinculasse a categorias estanques, tais como a carcomida definição de serviços, nem mesmo a atividades enumeradas (numeros clausus), uma vez que esse tipo de segregação certamente será fonte de novos conflitos interpretativos entre Fisco e contribuinte.

Nesse sentido, o ideal seria a adoção de alíquotas diferenciadas (e reduzidas) para empresas (e não setores) cuja folha de salários supere determinado percentual do faturamento, de sorte que quanto maior esse percentual, menor a alíquota cobrada do IBS. Se essa metodologia puder ser adotada, a reforma tributária poderá ser interessante para o setor de saúde e para a própria redução de informalidade das relações de emprego.

O mesmo racional poderia se aplicar à concessão de créditos presumidos de IBS: quanto maior o percentual da folha de salários em face do faturamento, maiores os créditos presumidos de IBS.

Por fim, a extinção/redução das contribuições sobre a folha de salários é tema bastante espinhoso. Afinal, se a ideia é desonerar a folha de salários (para alguns ou todos os setores), como financiar a seguridade social? Via tributação das movimentações financeiras, tema que já ocasionou a demissão de um secretário da receita federal? Ou via novo tributo sobre a receita bruta, como as PECs parecem indicar (e que foi recentemente abandonado)? E, no caso de uma nova desoneração da folha, como apontar os setores beneficiados?

Se a reforma tributária se mostra preocupante para o setor de saúde, com potencial aumento da carga fiscal, para o setor farmacêutico as perspectivas são bem mais tranquilas.

Em primeiro lugar, as duas PECs afastam duas extravagâncias do sistema atual, que hoje trazem grandes distorções na venda de medicamentos: a substituição tributária para frente e a tributação monofásica. Nas duas PECs, a tributação do IBS deverá ocorrer exclusivamente sobre o valor agregado, sem a previsão da reedição de tais mecanismos de tributação concentrada.

Ademais, é razoável supor que a reforma traga efetiva redução da carga tributária incidente na fabricação e revenda de medicamentos, uma vez que permite a substituição do ICMS, IPI, PIS/COFINS e outros por um único tributo, efetivamente incidente sobre o valor agregado. Nesse diapasão, ao admite a concessão de incentivos fiscais para medicamentos – como forma de priorizar o atendimento à saúde, a PEC 110 pode permitir novos investimentos ao setor farmacêutico, possibilitando crescimento relevante dessa área.

Como se nota, a reforma tributária pretendida nas referidas PECs enseja mais perguntas do que respostas e, embora baseada em sólidos fundamentos econômicos e orçamentários, ainda precisa de ajustes e calibrações que possibilitem uma distribuição da carga tributária justa e satisfatória entre todos os setores produtivos, sem recair nos antigos vícios do nosso carcomido sistema tributário.

Adicionalmente, a reforma tributária não pode ignorar a elevada carga tributária incidente sobre a folha de salários, e que tem trazido tantos prejuízos à competitividade da economia nacional. A evolução para um modelo tributário do consumo baseado no valor agregado pelos empresários requer grande atenção com a representatividade da folha de salários em cada setor, requerendo benefícios fiscais/desoneração da folha como medida de equilíbrio e manutenção das forças econômicas.

Esperamos, pois, que o Congresso Nacional fique atento a esses pontos sensíveis e possibilite uma discussão profunda desses pontos, de forma que todos possam ganhar com a reforma tributária e o Brasil ganhe eficiência e neutralidade em seu sistema tributário, eliminando distorções e não as provocando, como pode ser o caso da majoração que poderá ocorrer na área da saúde, prejudicando a essencialidade dos serviços. Resta saber como os setores político e econômico irão encarar essa reforma tão abrangente após a crise gerada pela pandemia do vírus corona.

*Estevão Gross

Advogado em SP e mestre em direito tributário

Sócio de GTLawyers

[1] De acordo com Estudos do Banco Mundial, o Brasil é o país onde mais se gasta tempo calculando e pagando impostos (https://g1.globo.com/economia/noticia/empresas-gastam-1958-horas-e-r-60-bilhoes-por-ano-para-vencer-burocracia-tributaria-apontam-pesquisas.ghtml).

[2] Vide Decreto 9.394⁄18.

[3] Leis 10.637 e 10.833, art. 10, XIII.

[4] Por envolver hipóteses fechadas, tais situações possivelmente deverão gerar questionamentos de classificação, do tipo (i) uma vitamina é um medicamento?; (ii) a lagosta, o camarão ou o foie gras devem ser beneficiados com redução do IBS, mesmo sendo alimentos?; (iii) medicamentos veterinários fazem jus à benefícios de IBS?